Atlas do Impossível - Edmar Monteiro Filho - Tomo Literário

Atlas do Impossível - Edmar Monteiro Filho

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Confira a resenha do livro Atlas do Impossível, de Edmar Monteiro Filho. A resenha abaixo é de autoria de Alexandra Vieira de Almeida - Doutora em Literatura Comparada (UERJ), cuja reprodução foi autorizada e, por isso, publicada aqui no blog.

Construindo o puzzle enigmático na obra Atlas do impossível, de Edmar Monteiro Filho
 
Os 15 contos do livro Atlas do impossível (Penalux, 2017), de Edmar Monteiro Filho, conduzem o leitor não a um caminho retilíneo e plano, mas por ruas curvilíneas e íngremes, perfazendo uma geometria de dificuldades, com figuras que se desdobram num virtuosismo profundo em que o leitor não tem possibilidade de escolha, uma vez que a narrativa revela múltiplos enfoques, mostrando o plurivocalismo e as camadas de um livro em expansão até o infinito. Para tal intento, o autor utilizou como referência 15 gravuras do formidável Escher, iniciando cada conto com uma ilustração do artista holandês. O título de cada conto é homônimo a cada gravura de Escher, já revelando uma estratégia temática de Edmar Monteiro Filho, a simulação e seu estranhamento a partir de cada narrativa. Outra homenagem prestada por Edmar no seu livro excepcional é a referência ao escritor argentino Borges que num dos contos deste livro é personagem da narrativa, valendo-se o autor brasileiro da temática borgeana também para estruturar a espinha dorsal de seus textos juntamente com Escher, demonstrando a riqueza que se bifurca neste livro, unindo as influências das artes plásticas e da literatura, nos revelando os diálogos entre Escher e Borges.

No catálogo do CCBB “O mundo mágico de Escher”, do curador Pieter Tjabbes, este já vislumbrava o paralelo entre os dois célebres artistas:  “...ambos abordam temáticas com filosofia (e seus desdobramentos matemáticos), infinidade e metafísica, em narrativas fantásticas onde figuram os “delírios do racional” expressos em labirintos lógicos e jogos de espelhos”. Edmar capta esta íntima relação entre ambos e produz um livro fantástico, trabalhando com a exploração dos efeitos do jogo de espelhos, como o papel do que se intenciona ou deseja com o que se afasta ou repele, que podemos ver no conto “Dia e noite”: “Observo o espelho prestes a quebrar-se...” A fragilidade do espelho aqui que pode se espatifar desnuda este espelhamento fragmentado que acaba levando ao oposto da imagem que se quer construir, ou seja, aquilo que reluz pode mostrar o seu lado mais sombrio. O paradoxo doença/cura nos leva à imagem do pharmakós que traz a cura mais também um veneno, que é a serpente enroscada em cada beleza. Como escapar de um caminho que pode levar à libertação, mas que traz inserida a ruína para estes personagens doentes que vivem nas ruas neste conto emblemático?

Há espelhos cortados, partes de um espelho formando o todo. O narrador joga com a inteligência do leitor o tempo todo, como se a própria narrativa fosse um espelho a ser refletido pelo leitor inteligente que deve juntar as peças deste puzzle enigmático. O livro de Edmar não percorre as linhas de uma narrativa fácil, é denso em seu poder de autorreflexão que se espelha no conhecimento de um receptor perspicaz. No conto “Predestinação”, temos esta urdidura máxima em que o narrador não poupa sua rica e admirável imaginação nos labirintos em múltiplos caminhos e ângulos. O conto nos faz recordar da origem da palavra “texto” que vem do latim textus, que significa “tecido”. Como não perceber que este conto é uma trama em que as várias linhas se chocam e se unem para formar um todo em seu sentido lógico e coerente? O conto nos dá a chave que tem que ser aberta pelos olhos iluminados do leitor atento. O narrador desafia a todo tempo o leitor como vemos em Machado de Assis.

Em “Convexo e côncavo”, a mensagem encontrada num origami do bonsai nos direciona para esta fragilidade tênue que se encontra na vida de nosso dia a dia: “A vida é frágil”, fazendo-nos lembrar da notável frase de Guimarães Rosa “Viver é muito perigoso”. Entre a fragilidade e o perigo, a vida carrega o peso desta medida que as personagens complexas e profundas deste maravilhoso contista nos revelam. A camada lisa do espelho é propensa ao arranhão, à rasura, à fratura. Os contos deste livro são intensos em demonstrar as peripécias da vida com suas realidades e irrealidades, com sua nudez e sonho. As personagens destes contos são andarilhos de um labirinto frágil que não lhes dá uma resposta satisfatória. O autor se pauta nas questões, nas interrogações que se encontram no lado ainda não visto do espelho, como em “Espelho mágico”, em que a foto deixada na mesinha da sala é o motivo para a narrativa e para as digressões do narrador/personagem, que se confundem.

São constantes as interferências do narrador, revelando a intensa maestria no próprio ato da narrativa e da leitura, que equaciona o conto como produto de um acontecimento, de uma presentificação, de um aqui-agora. Clarice Lispector era mestra em nos mostrar a partir de suas narrativas o “instante-já”, o tempo do agora, como proposto pela professora Carina Lessa. O conto “Três mundos”, de Edmar é impactante e revela a outra face do espelho literário, a meta-narrativa, com a autorreflexão sobre seu próprio processo de escrita. O narrador que é personagem, que busca afirmar uma verdade ficcional, onde realidade e ficção se mesclam, a memória e esquecimento se alternam, produzindo um conto de fôlego em que o contista mostra seu pleno domínio sobre esta arte difícil do conto que para muitos é o texto em prosa da literatura mais complexo de se elaborar, pois é necessária a medida certa, o ponto essencial.

Deleuze já apontava em Diferença e repetição que “...a mais exata repetição, a mais rigorosa repetição, tem, como correlato, o máximo de diferença”. Podemos perceber esta afirmação principalmente em dois contos de Edmar, “Fita de möbius” e “Mãos desenhando”. No primeiro, temos o “déja vu” da personagem e partes da narrativa são repetidas em espiral, revelando a dobra deleuziana que através da repetição produz uma diferença. O espelho mais uma vez aparece aqui, sendo uma metáfora recorrente nos contos de Edmar: “...esse tempo de onde meu rosto olhou-me do espelho, em que cada passo e cada gesto é a repetição de um enredo do qual conheço apenas o terrível desfecho.” No outro conto em que temos Borges como personagem, temos o estudante da faculdade de Buenos Aires Barros que faz uma entrevista com o célebre escritor argentino e na bela narrativa, temos um conto do universitário Barros dentro deste conto, aproximando ainda mais Escher e Borges, pois aquele aproveitava o espelhamento das formas geométricas, utilizando uma mesma imagem de forma diferenciada. Aqui o conto “Pierre Menard, autor de Quixote” de Borges do livro Ficções (1944) é também aproveitado a partir deste espelhamento. O uso dos nomes Borges e Barros não é gratuito para se falar do tema do simulacro. Assim, admiravelmente, temos um duplo jogo de espelhos. Edmar se utiliza do conto de Borges para fundamentar seu próprio e autêntico processo de escrita, pois apesar de se valer do artista plástico holandês e do escritor argentino, o contista brasileiro por ora aqui estudado é de uma originalidade surpreendente. Dialoga com grandes gênios, mas revela também sua intensa genialidade em construir contos tão elaborados e complexos em sua tessitura literária. Temos uma obra ricamente ficcional que conhece todo o processo da confecção de um verdadeiro conto sem deixar nada a dever aos grandes nomes da literatura.

Edmar Monteiro Filho produziu um belíssimo livro de contos em que ele monta um jogo de puzzle enigmático com os grandes artistas, com sua própria narrativa, com as personagens, com a escrita, com as artes plásticas, com o leitor; produzindo um tapete imaginário e real em que os desenhos geométricos se multiplicam em caminhos da escrita, fazendo de sua obra um mosaico de experiências variadas em que a autenticidade ganha voos altíssimos, costurando as linhas tênues entre a vida e a morte, entre o que se consagra, se realiza ou se fracassa na vida de personagens que deixarão o seu canto mais profundo em várias partes do mundo. O domínio do verbo em Edmar é complexo, profundo e infinito como nos espelhos de Escher e na biblioteca de Borges.

Sobre a autora da resenha:

Alexandra Vieira de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 1976. É Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. É poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Trabalha como agente de leitura na Secretaria de Estado de Educação. É tutora de ensino superior a distância na faculdade de Letras da UFF. Publicou artigos e ensaios literários em revistas acadêmicas especializadas e livros. Participou do livro “À roda de Machado de Assis, ficção, crônica e crítica”, com um ensaio literário (Argos, 2006). O livro foi organizado pelo professor Doutor João Cezar de Castro Rocha. Tem um livro de crítica literária, publicado em 2008, fruto de sua dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira, “Literatura, Mito e Identidade Nacional” (Ômega, 2008). Organizou juntamente com um amigo, Doutor em Letras, Ulysses Maciel, um livro de ensaios literários, intitulado “Inventário de literariedades e outras vertigens”(Imprinta, 2008). É membro correspondente da Academia de Letras de Teófilo Otoni, em Minas Gerais. Também foi aprovada por unanimidade pelos Dirigentes da Litteraria Academiae Lima Barreto (RJ) para o recebimento do Diploma de Distinção Literária, laurel máximo desta instituição. Além disso, a partir desta distinção máxima lhe foi conferido o título de Acadêmica Honorária desta excelente instituição. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil.

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