No início da Guerra Civil Espanhola, que se
deu em 1936, duas irmãs são enviadas para fora do país pelo seu avô, chamado de
Dom Reinaldo. As meninas viviam com ele, mas certo dia não encontram-no em
casa, mas ele retornou. Aquele repentino desaparecimento parecia ser o
prenúncio do que viria depois.
Escondendo-se de seus perseguidores o avô enviou
as netas para outro lugar e elas acabam vivendo na Inglaterra. Esse homem
guardava um segredo que vem a ser descoberto posteriormente. Ele era tido como
comunista e também como um cientista da aldeia na qual morava. Dom Reinaldo comprava,
em vida, o cérebro das pessoas para que pudesse estudá-los quando os donos
morressem. Precavido, fizera contrato com as pessoas que venderam o órgão.
As irmãs, que são órfãs e viveram com o avô,
são Dolores e Saladina. Elas são chamadas de “As Invernas”, que dá título ao
livro publicado pela Editora Tordesilhas em 2017 e que foi escrito pela
espanhola Cristina Sánchez-Andrade. A edição brasileira teve tradução de Fátima
Couto. As Invernas, depois de vier num outro país da Europa, retornam a aldeia cerca
de trinta anos depois.
“Fora
de Terra Chã, tinham chegado a se acomodar a outros climas e costumes, mas
nunca haviam deixado de sonhar com a casa e a figueira, com os verdes prados
sob a chuva.”
Dolores e Saladina são diferentes, tanto em
sua constituição física, quanto nas características psicológicas e
comportamentais. “A alta e a não alta; a
bonita e a feia; a que toma café da manhã e a que em vez disso come miolo de
pão com vinho; a que tem dentes e a que os perdeu mordendo o pão preparado com
pedra. A que é virgem e a que sabe Deus o que será...” Elas tem uma relação
tipicamente de irmãs. Sentimentos como inveja, raiva, amor, compreensão, cercam
a relação das duas, que vivem com bastante proximidade.
Dolores é a irmã que se casa, mas que vive
uma relação difícil com seu marido. Até que certa feita resolve visitar a irmã
e as duas acabam cometendo um ato tenebroso. Foi depois desse episódio que elas
resolveram voltar para a aldeia espanhola denominada de Terra Chã, onde viveram
anteriormente. A presença das irmãs por ali parece despertar todo o passado dos
habitantes do local, um passado que eles gostariam de manter esquecido.
“Ninguém
suspeita nada do que aconteceu conosco. Somos jovens, cruzamos fronteiras,
rios, pontes, cidades, falamos inglês, viemos o mar e fizemos cinema. O que
vamos fazer aqui, escondidas como percevejos e fechadas para o mundo, com
incríveis segredos em nosso interior, como essa gaveta que não quer abrir?”
Saladina, a irmã virgem, começa a envolver-se
com Tiernoamor, o protético que, inclusive cuida de seus dentes, ou melhor,
cuida de suprir a ausência deles. E, em dado momento, ele também tem revelações
inesperadas que serão feitas a uma das irmãs.
As Invernas são fãs de cinema e chegaram a
participar de filmes. Em vários momentos da trama elas comentam sobre seus
sonhos e desejos e citam grandes atores do cinema como Ava Gardner e Clarke
Gable. Apesar de alimentarem o sonho de serem atrizes elas atuam como costureiras,
diante da máquina Singer, acostumando-se ao cotidiano que agora tem em Terra
Chã.
“Mais
um dia. Mais um dia em companhia da irmã. A vaca, o monte, a Singer. Cerzir,
varrer, arrancar as teias de aranha e esfregar. A mesma coisa que fizera na
véspera e que faria no dia seguinte. Já havia algum tempo ela começava a pensar
que essa rotina que tanto as havia consolado ao chegar a Terra Chã não era
agora nada além de uma forma de envelhecer.”
Na casa antiga, elas moram também com a vaca
Greta, que vive no porão, quase como um cão domesticado. Em várias passagens do
livro outros animais ou insetos são citados, como o momento em que uma delas
cuida de um grilo, chegando a lhe dar o nome de Adolf Hitler. Situações
inusitadas que dão um ar diferente a toda a trama criada pela autora.
O livro tem uma narrativa não linear que
entremeia memórias com o momento vivido pelos personagens no presente. Cristina
Sánchez-Andrade, que é considerada uma das grandes vozes femininas da
literatura espanhola, tem uma narrativa que toca o leitor quase com um tom
poético. A história criada pela autora tem nuances cômicas e dramáticas, bem
como ironia e criticidade (como é o caso de que uma das irmãs tem sua beleza
ressaltada, enquanto a outra é tachada de feia), apresenta personagens em
momentos de alegria e de dúvidas, além de situações de turbulência. A autora
utiliza-se muito bem de sutileza e crueldade. Há certa estranheza que paira no
ar. Estranho é um ótimo adjetivo para definir a obra. No entanto, não é nenhum
demérito. A estranheza é uma particularidade que torna a história e seus personagens
ainda mais cativantes e instigantes ao olhar do leitor que tem contato com a
obra. Torna o livro singular.
Personagens com estilos diferentes, mas que
carregam em suas personalidades traços peculiares, o que é bastante ressaltado
na diferença entre as irmãs e em sua relação de proximidade e de conflitos,
povoam a cidade da história e dão um toque especial na trama. Inclusive os
personagens secundários são bem trabalhados pela autora.Todos são peculiares. Cristina
entrega ao leitor uma história bem consolidada, agradável de ler, fascinante
pelo modo pitoresco com que construiu Terra Chã e seus habitantes.
Cada um dos capítulos é aberto com uma
ilustração da Penndpaper. São imagens que remetem a casas de aldeias e dão um
toque especial ao projeto gráfico de Amanda Cestaro. Essas imagens conseguem
traduzir a atmosfera dos ambientes pelos quais As Invernas passam e onde as
cenas se desenrolam.
É um livro memorável!
Cristina Sánchez-Andrade (Santiago de Compostela,
1968) é escritora, crítica literária, tradutora e coordenadora de vários
seminários de narração. Formada em ciências da informação e em direito, é
autora dos romances Las lagartijas huelen
a hierba (1999), Bueyes y rosas
dormían (2001), Ya no pisa la tierra
tu rey (Anagrama, Prêmio Sor Juana Inés de la Cruz 2004), Alas (2005), Coco (2007), Los escarpines
de Kristina de Noruega (finalista do Prêmio Espartaco de Novela Histórica
2011) e El Libro de Julieta (2011).
Sua obra foi traduzida para o inglês, português, italiano, polonês e russo, e
sobre ela os críticos espanhóis disseram: “Uma escrita que trabalha com os
sentidos, uma lenda rude, selvagem e feroz... algo radicalmente novo na
literatura em espanhol, original e insólito” (Manuel Rivas); “Guardem este
nome: Cristina Sánchez-Andrade. É nada menos que uma das vozes femininas mais
poderosas que a literatura espanhola nos deu” (Nuria Martínez Deaño, La Razón);
“No caso de Cristina Sánchez-Andrade, pode-se falar, é claro, em uma escritora
com um mundo próprio e insólito e um estilo que surpreende” (Luis García
Jambrina, ABC).
Ficha Técnica
Título: As Invernas
Escritor: Cristina
Sánchez-Andrade
Editora: Tordesilhas
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-8419-047-8
Número
de Páginas:
279
Ano: 2017
Assunto: Romance espanhol
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