“O Filho de Mil Homens”, de Valter Hugo Mãe
foi publicado pela Editora Cosac Naify em 2013. A publicação original do texto
do autor ocorreu em 2011.
"Ser
o que se pode é a felicidade."
Crisóstomo, o pescador, vive só. O homem quer
ter um filho. Tamanho o seu desejo que até tem um boneco que trata como se
filho fosse. Eis que numa das surpresas da vida se depara com um menino: Camilo
é seu nome. Órfão, o menino se torna o filho que tanto ansiava o pescador. O
menino diz ao pai que ele precisa arrumar uma mulher, para se tornar completo.
"O rapaz pequeno crescia semeado com
boa esperança. Certamente seria terreno farto aquele lugar, a nutrir a
aprendizagem necessária, o afeto necessário."
Vamos
conhecer uma anã, que de tão pequena em seu tamanho, é tratada com certa
pena e certo desdém pelas vizinhas. Acreditam que a mulher não tem sorte,
posto que nunca poderá ter um homem de verdade, um homem natural. Seu corpo não
aguentaria. Eis que são surpreendidas com o fato de que a anã tem uma
cama de casal convencional e que ficará grávida. Passa a anã então, a ser vista
com mais desprezo. O filho, que pode ser de um de quinze pais, causa espanto e
alvoroço. Nasce o menino, prematuro e órfão, a ser levado para outro
alguém cuidar.
E
depois vem Isaura. Mulher casta, pura, inocente, que não quer
entregar-se ao homem que a ronda. Mas, por coisas da vida, cede.
Oferece-lhe a ferida, nome que ele dá ao que deseja. E esse homem,
conseguindo o que queria já não quer mais Isaura. Ela se vê magoada com o que
passou. O amor, a entrega da virgindade,
a castidade, tudo virou sangue, uma ferida de fato, por assim dizer.
E
tem Antônio, maricas que, para esconder sua condição, flerta com Isaura em
busca de com ela casar-se e sufocar seus desejos. Ele, que é tido como
uma negação pela mãe e por quem o aponta, pelo fato de ser como é.
"Mas o sossego de um homem maricas durava muito pouco, porque a cabeça conduzia para um lado e o corpo para outro, estraçalhando, no meio, o coração. Um homem maricas não podia deixar de o ser e, para infelicidade de quantos o tivessem por perto, era inevitável que recolhesse dos corpos dos homens os sonhados , as fantasias com as quais, na verdade, a felicidade se cobria."
"Mas o sossego de um homem maricas durava muito pouco, porque a cabeça conduzia para um lado e o corpo para outro, estraçalhando, no meio, o coração. Um homem maricas não podia deixar de o ser e, para infelicidade de quantos o tivessem por perto, era inevitável que recolhesse dos corpos dos homens os sonhados , as fantasias com as quais, na verdade, a felicidade se cobria."
Camilo,
Crisóstomo, Maria, Matilde, António, Rosinha, Mininha, Gemundio, Rodrigues,
Carminda, Alfredo e tantos outros personagens que vão se desenrolando e se
enrolando na teia da vida, das relações, dos afetos e desafetos, das ilusões e
desilusões, chegam aos leitores no livro "O Filho de Mil Homens".
As histórias contadas a cada capítulo vão
sendo costuradas e revelam ao leitor os acontecimentos da vida dos personagens
que se cruzam por diferentes caminhos. O entrelaçamento de vidas, ocasiões,
situações e laços que acontecem sem que nos demos conta. Cada um em seu mundo,
o mundo se cruzando e formando novas histórias. É assim na vida. Com
perdas, angústias, desilusões, paixões e sonhos a serem alcançados. Com o
dia a dia a escancarar o que nos pesa e o que nos acalma.
Os personagens sólidos, bem constituídos e
singulares nos amarram na trama construída por Valter Hugo Mãe. A narrativa
coesa, coerente, fluída leva o leitor a debruçar-se sobre cada palavra, cada
linha, cada página, que com brilhantismo o autor vai costurando os fatos e
amarrando os pontos.
"...todos nascemos filhos de mil
pais e de mais mil
mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo,
para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como
se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como
se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta
gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós."
É um livro sobre cuidados. Sobre a
necessidade que temos de nos sentirmos acolhidos e não solitários, ainda que
encontremos percalços ao longo da jornada. Na vida dos personagens é assim.
Metades que sozinhas precisam ser preenchidas para que o todo se forme. As
diferenças acabam, de um jeito ou de outro, sendo superadas pelo querer não
estar só.
A obra trata ainda das indiferenças humanas frente ao
diferente, quando revela o preconceito vivido anã, por exemplo, ou o repúdio ao
homossexual, o que ocorre inclusive pela sua própria mãe que o vê como uma
aberração. A contundência com que as coisas se desenrolam, leva-nos a ver a
necessidade de agrupar, de acolher e de criar uma grande família... ninguém
quer ficar só.
“O filho de mil homens” é um belo livro. O
texto do autor é fascinante e o projeto da Cosac Naify, seguiu a linha de
qualidade que tanto deram destaque a seus livros publicados. No livro de Valter
Hugo Mãe somos convocados a perceber que somos todos pais, mães, filhos,
sobrinhos, tios, uma rede que forma uma grande e complexa família.
Sobre o autor
Foto: Rita Rocha |
Valter Hugo Mãe nasceu na cidade de Saurimo, em Angola, em 1971, mas desde a infância vive em Portugal. Vencedor do Prêmio Literário José Saramago em 2007, Valter arrancou elogios do grande escritor português, que comparou a experiência de lê-lo a “assistir a um novo parto da língua portuguesa”. Como poeta, publicou mais de quinze livros. Autor de outros quatro romances, “A máquina de fazer espanhóis” (2010, também publicado pela Cosac Naify ), “O nosso reino” (2004), “O apocalipse dos trabalhadores” (2008) e “O remorso de Baltazar Serapião” (2006, este publicado no Brasil pela editora 34), Valter é também artista plástico e vocalista de uma banda. Em 1999, fundou a Quasi Edições, que publicou, entre outros, obras de autores brasileiros como Ferreira Gullar e Caetano Veloso.
Ficha Técnica
Título: O Filho de Mil
Homens
Escritor: Valter Hugo Mãe
Editora: Cosac Naify
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-405-0433-2
Número
de Páginas:
256
Ano: 2012
Assunto: Ficção portuguesa
Assunto: Ficção portuguesa
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